Nesta noite linda e quente de primavera eu os presenteio com um conto da minha prima Mágali.
Boa leitura! Abraço! Karem
Alma gitana
Mágali Bianchi Alcântara
O vento agitou os toldos das
carroças que partiam ao amanhecer, enquanto o sol entre nuvens, fraco demais, não
aquecia a alma inquieta do cigano que ainda ouvia os últimos acordes da
guitarra. A noite tinha trazido o alento
de que precisava, mas ao ver a dançarina
girando lembrou de um passado que precisava esquecer. Talvez o som
machucasse aquele coração, mas o povo pobre e sem perspectiva sorria e
acreditava que dias melhores haveriam de surgir. Sempre movidos pelo
desconhecido, pelo novo, esses seres nômades ocultam sua dor no sorriso e seus cantos não
são mais do que lamentos que inundam os olhos.
Não lembrava bem o que tinha
ido fazer, mas ao vê-la o tempo parou e
ele esqueceu até de respirar.
-Anda, Miro, traga os cavalos! Disse
irritado, Diogo, o chefe da caravana, tu bem sabes que temos de chegar em Jerez
amanhã cedo.
-Já vou, responde Miro, distraído
com a beleza que insistia em lhe perseguir.
-O que você tem, garoto? Está
abobalhado!
-Nada, senhor, farei o que me pede.
Arrastado pela ilusão, Miro
foi atrelando os cavalos ,enquanto Diogo gritava ordens para os demais. Apesar
de não ser evidente a organização, ela existe no povo cigano, e o chefe conduz
o povo com pulso firme.
Recolher as
panelas de barro, e as colheres de cobre
são tarefas das mulheres. Elas cozinham, dançam e amamentam seus filhos. Vêem a
sorte nas linhas das mãos enquanto crianças choronas e ranhentas penduram - se nos seus colos fartos.
Miro pensa em Tâmara, e
percebe que aquela mulher não é do feitio das ciganas comuns, com as quais
convive. Mas o chefe ordenou presteza no serviço e ele resolve obedecer pois
não queria ouvir berros insanos.
A
noite cai rapidamente e o ar que sopra do mar enregela os ossos no mês de
março. Sobrevém à fome e o cansaço de quem criado no ermo, sem mãe e sem um lar
já está costumado a enfrentar. A Andaluzia tem um clima mais ameno, mas nem ela
escapa dos caprichos do tempo. Miro se
achega ao grupo, onde as anciãs preparam um caldo e espera pacientemente sua ração minguada. Subitamente risos se ouvem
e chitarras começam a sonar. Da
escuridão vem o som e o perfume . Vários homens se aproximam e ela vem pisando macio ,requebrando os
quadris e marcando o compasso da música com as mãos. É um espetáculo grandioso aos olhos daquele menino, que
embevecido, ri estupidamente e ergue as
suas mãos no ar, como se quisesse aprisionar aquele momento.
-Estúpido! O que pensa que está fazendo? Saia daqui! Esse é
o momento do clã, não dos cuidadores de cavalos. E quem você pensa que é para
olhar para Tamara? Diz, irritado Manolo, o
atual amante de
empurra Miro ,dando-lhe socos e pontapés e colocando-o para fora daquela
roda.
Tamara, que
Ninguém
o defende. Não há compaixão. Miro cambaleia, infeliz e só, para perto dos
cavalos, agachando-se, segurando os joelhos e
tentando suportar aquela dor.
Permaneceu
assim por horas. Respirando rápido, lágrimas salgadas cortando sua face gelada pelo ar da noite.
De
repente, volta o perfume e seu braço é sacodido. Ele, sem acreditar, a vê
materializada na
-Beba! Você está congelado! Manolo é um estúpido, não
suporta dividir-me com ninguém, nem mesmo com a minha dança, disse Tamara
tentando reconfortar o rapaz.
Sentou-se
ao seu lado e começou a contar da sua vida e da paixão pela dança. Disse
sentir-se livre enquanto dançava, sem amarras, sem precisar dar satisfações a ninguém.
Enquanto ela falava, Miro
olhava a delicadeza do rosto, a suavidade das linhas do pescoço, mas o que mais
chamava sua atenção era a tristeza do seu olhar. Como alguém que era tão
desejada poderia ser tão triste?
A
madrugada já ia alta e a conversa se prolongava, pois Miro provava ser um bom
ouvinte e apesar da sua simplicidade, sabia colocar as palavras adequadamente, o
que fascinou aquela mulher.
Precisavam
de carinho e de compreensão. Da conversa, então, brotou um
sentimento único, uma atração
inexorável.
Assim,
quando o dia clareou, o sol os encontrou enlaçados, com um sorriso nos lábios,
próprio daqueles que se amam sem reservas.
Um
estampido brusco, um tiro certeiro ceifou repentinamente a vida ímpar de
Tamara, que jazia nua, nos braços de Miro. Olhos entreabertos e um semi-sorriso
nos lábios, despedia-se desse mundo em paz.
Agora,
já velho, num outro março qualquer, as recordações se intensificam e ele pede a
Deus que o leve desse mundo. Errante , viveu muitas aventuras ,amou muitas mulheres e teve muitos filhos, mas a
suavidade do perfume de Tamara o envenenou pra sempre, transformando-o num pálido arremedo de ser humano.
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