terça-feira, 17 de novembro de 2015

Meu Menino






                       
E a ansiedade atropela, o calor de tanto amor queima, devasta,  louca para  te ver, te ouvir nos primeiros sinais de estou aqui choramingando, chorando para valer, enchendo todos os espaços da casa com seu som.
E aquele cheiro de bebê que emana de um corpinho tão pequeno e alegra e invade a todos com o prelúdio de renovação no clã. Ah meu menino! Nosso Théo amanhã rasgarás o espaço da vida energizando tua existência...
Papai e mamãe, e todos nós,  estaremos aqui para cada descoberta ,nas horas certas e incertas.            Karem Medeiros

domingo, 8 de novembro de 2015

Alma Gitana





Nesta noite linda e quente de primavera eu os presenteio com um conto da minha prima Mágali.
 Boa leitura! Abraço! Karem





Alma gitana
                                                                                                                          Mágali Bianchi Alcântara

                   O vento agitou os toldos das carroças que partiam ao amanhecer, enquanto o sol entre nuvens, fraco demais, não aquecia a alma inquieta do cigano que ainda ouvia os últimos acordes da guitarra. A noite  tinha trazido o alento de que precisava, mas ao  ver a dançarina girando lembrou de um passado que precisava esquecer. Talvez  o  som machucasse aquele coração, mas o povo pobre e sem perspectiva sorria e acreditava que dias melhores haveriam de surgir. Sempre movidos pelo desconhecido, pelo novo, esses seres nômades  ocultam sua dor no sorriso e seus cantos não são mais do que lamentos que inundam os olhos.
       
           Miro tinha apenas 16 anos quando encontrou aqueles olhos negros. Tâmara era seu nome.  Mulher de idade indefinida, cabelos cor de azeviche e cintura fina. Seu sorriso era arrebatador e sua sina era enfeitiçar. Foi amor à primeira vista, embora ela sequer o notasse.
                  Não lembrava bem o que tinha ido fazer, mas ao  vê-la o tempo parou e ele esqueceu até de respirar.
-Anda, Miro, traga os cavalos! Disse irritado, Diogo, o chefe da caravana, tu bem sabes que temos de chegar em Jerez amanhã cedo.
-Já vou, responde Miro, distraído com a beleza que insistia em lhe perseguir.
-O que você tem, garoto? Está abobalhado!
-Nada, senhor,  farei o que me pede.
                      Arrastado pela ilusão, Miro foi atrelando os cavalos ,enquanto Diogo gritava ordens para os demais. Apesar de não ser evidente a organização, ela existe no povo cigano, e o chefe conduz o povo com pulso firme.
                      Recolher as panelas de barro, e  as colheres de cobre são tarefas das mulheres. Elas cozinham, dançam e amamentam seus filhos. Vêem a sorte nas linhas das mãos enquanto crianças choronas e ranhentas  penduram - se nos seus colos fartos.
                      Miro pensa em Tâmara, e percebe que aquela mulher não é do feitio das ciganas comuns, com as quais convive. Mas o chefe ordenou presteza no serviço e ele resolve obedecer pois não queria ouvir berros insanos.
                      A noite cai rapidamente e o ar que sopra do mar enregela os ossos no mês de março. Sobrevém à fome e o cansaço de quem criado no ermo, sem mãe e sem um lar já está costumado a enfrentar. A Andaluzia tem um clima mais ameno, mas nem ela escapa dos caprichos do tempo. Miro  se achega ao grupo, onde as anciãs preparam um caldo e espera pacientemente  sua ração minguada. Subitamente risos se ouvem e  chitarras começam a sonar. Da escuridão vem o som e o perfume . Vários homens se aproximam  e ela vem pisando macio ,requebrando os quadris e marcando o compasso da música com as mãos. É um espetáculo  grandioso aos olhos daquele menino, que embevecido, ri estupidamente  e ergue as suas mãos no ar, como se quisesse aprisionar aquele momento.
-Estúpido! O que pensa que está fazendo? Saia daqui! Esse é o momento do clã, não dos cuidadores de cavalos. E quem você pensa que é para olhar para Tamara? Diz, irritado Manolo, o  atual amante de   empurra Miro ,dando-lhe socos e pontapés e colocando-o para fora daquela roda.
Tamara, que
                     Ninguém o defende. Não há compaixão. Miro cambaleia, infeliz e só, para perto dos cavalos, agachando-se, segurando os joelhos e  tentando  suportar aquela dor.
                     Permaneceu assim por horas. Respirando rápido, lágrimas salgadas cortando sua face  gelada pelo ar da noite.
                     De repente, volta o perfume e seu braço é sacodido. Ele, sem acreditar, a vê materializada na
sua frente, oferecendo uma tigela com um caldo cheiroso e quente.
-Beba! Você está congelado! Manolo é um estúpido, não suporta dividir-me com ninguém, nem mesmo com a minha dança, disse Tamara tentando reconfortar o rapaz.
                     Sentou-se ao seu lado e começou a contar da sua vida e da paixão pela dança. Disse sentir-se livre enquanto dançava, sem amarras, sem  precisar dar satisfações a ninguém.
                     Enquanto ela falava, Miro olhava a delicadeza do rosto, a suavidade das linhas do pescoço, mas o que mais chamava sua atenção era a tristeza do seu olhar. Como alguém que era tão desejada poderia ser tão triste?
                     A madrugada já ia alta e a conversa se prolongava, pois Miro provava ser um bom ouvinte e apesar da sua simplicidade, sabia colocar as palavras adequadamente, o que fascinou aquela mulher.
                    Precisavam de carinho  e  de compreensão. Da conversa, então, brotou um sentimento único, uma atração  inexorável.
                    Assim, quando o dia clareou, o sol os encontrou enlaçados, com um sorriso nos lábios, próprio daqueles que se amam sem reservas.
                   Um estampido brusco, um tiro certeiro ceifou repentinamente a vida ímpar de Tamara, que jazia nua, nos braços de Miro. Olhos entreabertos e um semi-sorriso nos lábios, despedia-se desse mundo em paz.
                   Agora, já velho, num outro março qualquer, as recordações se intensificam e ele pede a Deus que o leve desse mundo. Errante , viveu muitas aventuras ,amou  muitas mulheres e teve muitos filhos, mas a suavidade do perfume de Tamara o envenenou pra sempre, transformando-o  num pálido arremedo de ser humano.